Adeus, esgoto!
Hoje moradores da Vila Mariana, casal de ex-usuários de crack que vivia em cano nas margens do rio Tietê tenta se adaptar à nova vida.
No dia em que faliu foi para a rua Augusta. Havia mais de dez anos que não usava nada. De bar em bar, acabou no centro. Uma carreira de cocaína, outra… Mais algumas. A angústia de perder tudo.
Não demorou, enfim a cracolândia. Só, sem amigos e sem dinheiro. A cabeça a mil.
“Foi questão de horas, parei na rua do inferno’, a Guaianases [na cracolândia]”, afirma Marcus Vinícius Gonçalves Xavier, 34, olhos fixos no gravador, cabeça erguida e o semblante cerrado.
No início de 2011, ele acabara de abrir uma clínica para dependentes químicos na Grande São Paulo, conta ele. Era isso que sabia fazer, “resgatar viciados”. Fizera isso nos últimos anos e, àquela altura, nem três meses após a inauguração, estava falido.
Sem casa, fumando “o quanto de crack parasse na mão”, no início de 2011, Marcus passou a traficar para sustentar o vício.
A boca de fumo: um Cingapura na zona norte da cidade.
Arredio -mesmo com os outros traficantes- recebeu na boca o apelido de Zica’.
“Para todo mundo, quem usa crack é nóia. Ficava puto se alguém me chamasse assim. Batia de frente com quem quer que fosse”, diz.
Queria ser livre, por isso havia deixado a família em Salvador, por isso fumava, diz.
Morava na rua. Vendia e usava drogas, sem parar.
Um dia, olhou para o Tietê. Não enxergou a sujeira, o lixo, nem se importou com o fedor. Viu, sim, um refúgio.
“Até hoje me perguntam por que? Sabe quando você tem um sonho, tudo dá errado e tua família vai dizer esse aí nunca vai ter jeito’? Você vê tudo ir por água abaixo.”
Sem se importar, o ex-aluno de escola particular, ex-aspirante a frei, filho de um arquiteto e de uma administradora foi morar numa tubulação de esgoto ao lado do rio.
Conseguiu se instalar fechando parcialmente a passagem de água com tijolos e cimento recolhido em obras pela rua. Ele diz que nunca teve problemas de inundações.
No espaço em que não cabia de pé, colocou o colchão sobre um pallet de madeira. Um filete de esgoto escorria pela passagem que deixara na “reforma do buraco” e passava por baixo de onde dormia.
Ali, na altura da ponte do Limão, zona norte, construiu sua casa’. A vida girava em torno do crack e da sujeira que corre à céu aberto bem no meio da maior cidade do país.
Em uma caixa, guardava poucas mudas de roupa e pacotes de vela. Isso e alguns galões de gasolina para vender aos motoristas que tivessem problemas na marginal.
Criou uma horta em pneus que o rio trazia. Couve, tomate… Maconha. “Joguei umas sementes que havia fumado e nasceu”, lembra e se diverte.
Marcus nunca estava só. O rio e a pedra lhe bastavam. Pelo menos era o que pensava.
FRANCINE
“Cinco de junho de 2012. Lembro também a hora se você quiser saber” , diz Marcus. “Nesse dia vi a Francine na frente da favela.”
Normalmente sujo e mal vestido, a partir desse dia ele passou a frequentar mais vezes uma bica próxima às margens do rio e começou a andar o mais limpo que pudesse.
Francine de Lima, 30, saíra de casa havia pouco tempo. O crack já lhe roubara dez quilos e a vida em família.
“Olhei para ele e soube que queria esse homem”, diz. “Não queria descer lá [no Tietê] por nada, mas na minha loucura fui ver. Fiquei.”
O nojo inicial logo se dissipou. “Barata tinha, mas rato nunca vi ali”, afirma ela.
Não demorou para Marcus largar o tráfico e perceber que sua vida estava mudando.
A “patricinha” da zona norte, filha de família de classe média, transformou a rotina no buraco do Tietê.
Quando ela “chegava doidona” era ele quem a colocava para dormir. Marcus ia à feira para garantir a salada de frutas da companheira.
Nessa época, não foram poucas as pessoas que tentavam se aproximar. Ele sempre rechaçava.
No final 2012, uma foto do casal levou uma equipe da TV Record até a beira do Tietê. Após a exibição da reportagem “continuamos nossa vida, normal”, diz ele.
O Ano Novo chegou e logo no primeiro dia de 2013, um conhecido, diz Marcus, lhe estendeu a mão para sair do esgoto. Ainda que não mantenham mais contato, ele garante que sempre será grato.
Durante 28 dias, o casal se internou para um breve período de desintoxicação.
Quando saíram, a realidade ameaçava engoli-los. As recaídas vieram para ambos. As oportunidades também.
Francine conseguiu um emprego numa clínica ortopédica, na zona sul. Marcus começou a se virar, pintando parede e fazendo bicos.
Ela diz que hoje consegue entender o que viveu. “Não tenho vergonha disso. Cada um tem sua história.”
Com uma renda de cerca de R$ 2.000, há um ano o casal aluga um quarto de R$ 600 numa casa na Vila Mariana.
Televisão de tela plana, micro-ondas, iPhone, o casal experimenta agora o que não podia ter no esgoto.”O Tietê me ensinou muito, mas não volto mais para lá”, diz Marcus.