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“Nós e o espelho” é a crônica da semana escrita por Nilson Lattari

Foto de Jovis Aloor na Unsplash

          Nada é mais cruel do que um espelho diante de nós e, ao mesmo tempo, quanto ele pode nos envaidecer. Poderíamos dizer, também, que, quando olhamos para o mundo, imaginamos ser os únicos, os mais especiais. Nossa imagem real está, de uma certa maneira, atrás de nós. Somos um tipo de egocêntrico que vê o mundo dali para diante e não enxergamos o que nós somos. Quando nos olhamos no espelho nos vemos como aqueles que gostaríamos ser. E por isso nos preparamos para o encontro com alguém ou com o mundo, com uma visão bem amigável de nós mesmos.

          O espelho é o desmentido da alma. Somos aquilo que vemos, não o que somos. E nada é mais edificante, revelador e terrível do que ver a si mesmo com os defeitos que nos diferenciam dos padrões de beleza, endeusados e reverenciados por muitos.

          O espelho passa a ser um símbolo da escravidão, assim como o espelho das redes sociais nos escravizam. Para o espelho estamos sempre sorrindo, e sorrimos no anonimato, mostrando somente nossos lados positivos e alegres. E escondemos de nós e do mundo o que, realmente, somos.

          Como seria bom deixar com o espelho todos os nossos defeitos e desqualificações! Como um pacto igual a Dorian Gray entregando para ele nossa velhice, nossos defeitos e deixando viver para sempre um lado externo bonito e jovem.

          No entanto, o espelho não é um retrato que ficará fixo para sempre. Ele também envelhece junto. Não o espelho, mas a imagem que ele reflete. Aceitar o tempo é muito difícil. Desejaríamos ser eternos como os espelhos. Mas eles também envelhecem com o tempo, a não ser aqueles cristais raros e caros que encantam palácios e realezas.

          Como é ser velho depois de se arriscar em manter uma juventude eterna com intervenções cirúrgicas, maquiagens, roupas e sorrisos artificiais? Como será conviver com o futuro que vai chegar e ser escravo do espelho da vaidade?

          O espelho nos espelha a verdade do que somos ou tentamos ser através dele, como um cúmplice partícipe da nossa busca pela juventude eterna.

          A beleza é uma escravidão. A beleza também tem seu tempo de duração. Por isso, alguns valorizam uma beleza interna que ninguém reconhece, e o espelho da nossa alma é a única testemunha das nossas desditas.

          Ser belo é uma escravidão e procurar uma beleza que pertence a outros uma escravidão maior ainda. E é o espelho o parceiro nessa aventura desmedida.

          Quando somos jovens, o espelho é o mais assediado. Estamos nos mirando e olhando, corrigindo defeitos e melhorando o que na juventude nada mais pode ser melhorado. A própria juventude é uma beleza natural. E nem sempre devemos fazer aquilo que os outros e o espelho nos pedem. A maior liberdade é ser sem precisar dizer ou provar isso a ninguém.

          E quando sorrirmos para o espelho, não sorrir para agradar a alguém, mas rir do próprio espelho do jeito que ele nos vê.

          Quando o sol bate no espelho ele é opaco e sem vida. Ele é um ser imóvel e não pode nos dizer o que queremos ser.